segunda-feira, 31 de agosto de 2009

Antes ser a outra?



Surpreendo-me ao atender o telefone e ouvir a voz de Flor - afinal, ela deveria estar viajando. Quando nos falamos na última vez estava esfuziante, animada, transbordando alegria. Alegria demais, como comentei então. "Nina, você é sempre assim, vê coisas onde elas não existem! Não, não estou triste. Sim, está tudo bem. A vida é bela, amiga, e o amor é lindo. E vamos, Moreno e eu, passar o fim de semana em Maceió, namorando, curtindo a praia, o amor, um ao outro. Não queira estragar isto, ok? Não me critique, não me questione, me deixa ser feliz!" E desligou o telefone pra terminar de arrumar a mala, ir ao salão, se preparar, enfim, pra um fim de semana idílico com seu amor de longa, longuíssima data. Isto aconteceu na quarta feira, há dois dias.
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- Oi, Flor! O que aconteceu? Você não deveria estar em Maceió???
- Ah, Nina... preciso taaaaaaanto de você... não diga nada, por favor, não suportaria... preciso de alguém que me ouça, que me entenda, que me dê colo...
Então, algo deu errado. O que ela não percebe é que eu não consigo entender, que mais que ouvi-la queria que ela me ouvisse, que só ofereço meu colo em nome de nossa amizade, ainda mais antiga que este romance absurdo que se tornou o centro de sua vida...
- Não chore, Flor. O que aconteceu?
- Não fomos, Nina. Deu tudo, tudo errado. O peste do Pedro quebrou o braço num jogo de futebol, e pediu que o pai ficasse com ele, e você sabe como Moreno é louco por esse menino, faz tudo o que ele quer...
Ai, ai, minhamiga, minha querida amiga. Moreno é louco pela família dele - esposa, filho, filha. E é isso que eu queria tanto, tanto que você percebesse, a fim de que pudesse buscar, enfim, ser feliz - e quem sabe construir sua própria família!
- Acidentes acontecem, Flor... são coisas fora de controle, não são planejados...
- Ah, mas eu tenho certeza que aquela bruaca da mulher dele desconfiava... ela deu um jeitinho de atrapalhar tudo, eu sei!
- Flor...
- Ah, Nina, vem aqui em casa, vem... por favor, por favor, por favor!!!! Preciso de você, amiga, preciso tanto!
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Abre a porta com olhos inchados e vermelhos - sinal de que já esgotou um tanto da dor nas lágrimas derramadas. Coloco no chão as sacolas de mercado e abro os braços pra acolher esta minha amiga tão querida num abraço que busca aquecer seu coração, lavar sua alma, aliviar sua dor...
- Vai, vai tomar um banho daqueles de lavar a alma. Olha, eu trouxe aquele sabonete energizante que você gosta tanto... vai, não discute, enquanto isto eu vou arrumar algo pra gente comer - mesmo que você não tenha fome, lembra que eu trabalhei o dia todo e tô faminta! E você vai comer comigo, afinal desmarquei meu jantar com Amor pra ficar com você, não vai me deixar comer sozinha agora!
Sei bem como agir, afinal não é a primeira - e infelizmente não será a última - vez que venho socorrê-la num momento assim, o que me dá know how suficiente pra agir com segurança e desenvoltura sem medo de feri-la ainda mais. Amor também não consegue entender como é que ela, uma mulher bonita e independente, fica refém desta relação tão desigual e infrutífera - mas entende que ela é uma grande amiga, que precisa de mim, e vai pro jogo de poquer que sua galera do trabalho marcou hoje à tarde, quando já tínhamos combinado um jantarzinho romântico (chego a desconfiar que com uma alegria um pouco maior do que a desejável)...
Enquanto ela se arrasta para o banheiro, vítima infeliz relegada pelo amante a segundo plano, lavo a louça na pia, coloco o sorvete e o vinho no freezer, a pizza no forno, não sem antes procurar o CD especial que gravei em seu último aniversário... Ivan Lins cantando Vitoriosa é o fundo musical pra melhorar o seu astral, depois Ney Matogrosso, Skank, Cidade Negra, uma seleção sui genêris e especial pra minha amiga...
Vinho, pizza, música, sorvete - e meu silêncio, que hoje é dia só de ouvir, não de falar. Deixo que ela desabafe, que derrame as poucas lágrimas restantes, que se perca em autocomiseração e ofereço meu colo, meu abrigo, a amizade de sempre e a paciência -agora rara. Acomodo-a na cama, embriagada em abandono, tristeza e vinho, e vou ao filme que tinha locado no horário de almoço, "odeio o dia dos namorados". Nada mais adequado.
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Sábado pela manhã Flor se levanta tarde, de ressaca. Olhos inchados, olheiras, pele sem viço. À mesa já um café da manhã de sábado: fruta, suco, ovos, aipim, calabresa, torradas. Ela vem arrastando os chinelos, ombros caídos, senta-se diante de uma xícara de café quente e me olha com aquele jeito de quem pede clemência, não, não fale nada, eu não mereço ouvir. Ah, merece, Flor. Merece sim. E vai ouvir. Este é o preço - tudo na vida é troca, tudo tem preço, não tem? Até a amizade.
- Não entendo você, juro. Eu tento, tento mesmo, do fundo do meu coração, mas não consigo entender - tampouco aceitar - o que você faz consigo.
- Não, Nina. Agora não. Por favor, dá um tempo.
- Sinto muito, Flor. Não dá pra esperar. Há quanto tempo você vive esta situação, mulher???? São dezoito anos, uma vida, complentando maioridade! Tá na hora de você adquirir juízo!
- O que eu posso fazer se o amo?
- Ama? Ama mesmo? Que amor é este, maior do que o que sente por si? Como é que você quer que ele a ame, se você não se ama?
- Pra você é fácil falar, Nina. É linda, bem resolvida, tem Amor a seu lado, que faz tudo o que você quer, que está sempre com você, que chega a dar inveja do fato de vocês serem, por vezes, odiosamente felizes!
- Flor... pára. Não é essa a questão - e você sabe. Você é linda, é independente como eu... e eu e Amor nos conhecemos e construímos uma história um com o outro...
- Mas eu também! Também eu construí uma história com Moreno, e uma história linda...
- Que história linda, Flor??? Ele tem outra história, é casado, CA-SA-DO, tem filhos...
- Amor também tem filhos!
- Sim, Flor. Amor tem filhos, e eu também. Mas de outras histórias, que aconteceram e acabaram antes de nos conhecermos... quando volto pra casa à noite, ele está lá, ao meu lado. Em nossos aniversários - de nascimento, de relacionamento - estamos sempre juntos pra comemorar. Ele está comigo nos natais, nos reveilons, nos dias dos namorados e em qualquer momento que preciso... é meu companheiro de verdade, amiga. Moreno nem ao menos seu aniversário passa com você!!!!
- Ah, mas que culpa ele tem se a filha faz aniversário no mesmo dia que eu????
- Até quando, minha amiga, você vai buscar desculpas pra justificar o egoísmo dele e sua infelicidade??? Quantas vezes isso já aconteceu antes, Flor? Quantos foram os planos abortados porque um filho se machucou, porque a sogra chegou sem avisar, porque os cunhados vieram passar o fim de semana de surpresa???? Quantos natais sozinha, sem ele? Quantas vezes você precisou dele ao mesmo tempo que a mulher, e ele nem titubeou em deixar você se virar só? Não vou mais, prometo, falar de princípios morais, de como sua mãe se sentiria se descobrisse, de como sua família reagiria... não tenho mais estes argumentos, acabaram. Mas não dá pra ficar olhando calada você se acabando.. Tem quarenta anos, minha amiga. Abriu mão de filhos, de carreira em outro estado pra ser a outra... e o que ganhou com isso, além de momentos fugazes com ele??? Sei que acreditou que conseguiria um dia, tê-lo pra si... que investiu nisso esses anos todos... mas não tá na hora de pensar um pouco em você??? De buscar ser feliz??? Não tá na hora de parar de se contentar com migalhas, Flor?
- Eu o amo... não sei viver sem ele, Nina.
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Que triste olhar esta pessoa que amo tanto, esta mulher linda e bem sucedida profissionalmente tão entregue assim. Lembro de como um dia de bom humor ela me contou, rindo, sobre uma sua comunidade no orkut: "antes ser a outra do que ser a trouxa" - e penso, tristemente, se ela se deu conta de que desempenha os dois papéis títulos aí...
Sei que não adianta falar - esta é a escolha que ela fez, ser a outra, se contentar com migalhas, com o anonimato, com encontros furtivos, com viagens esporádicas, momentos efêmeros que sustentam um sentimento incompreensível pra mim - e talvez seja esta, afinal, sua maneira de ser feliz - viver em preto e branco olhando outras vidas em cores - afinal quem disse que preto e branco não tem sua beleza???
Triste maneira de ser feliz.

2 comentários:

  1. "Faça o que for necessário para ser feliz. Mas não se esqueça que a felicidade é um sentimento simples, você pode encontrá-la e deixá-la ir embora por não perceber sua simplicidade."
    (Mário Quintana)
    Dizem que a felicidade não é eterna... então, que cada um seja feliz à sua maneira... :P

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  2. história verídica?!?!??!

    droga! eu sempre fico curiosa para saber quem são os personagens!!!
    :(

    enfim... é incrível como eu nunca tenho uma opinião mesmo né, mas acho que essa história de felicidade é relativa... quem disse que ela é feliz?!?!? quem disse que essa Flor não usa este Moreno como uma fuga de sua vida? afinal, já que ela é linda e realizada profissionalmente, acho que ela só está procurando motivos para ser infeliz e, assim, ter algo para fazer na vida... lutar para não ser mais a "outra" (estragando, assim, a felicidade de outrém), até que um dia ela vai conseguir... e quando ela conseguir, ela vai fazer o quê?? vai é se sentir infeliz, insatisfeita, vai ver que não é aquilo o que ela queria realmente... que é, aliás, o que acontece com a maioria das pessoas.

    ACORDA, MENINA!!! (não, a intenção não era copiar a loira josé)
    se ligue!
    tem vida aí fora, pare de olhar para o seu próprio humbiguinho e veja que o mundo continua rodando sem ele! precisa de um sentido na vida? tente melhorar o mundo, há ainda muito o que ser feito!

    (hoje eu estou um pouco cruel, sim.)

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