sábado, 15 de agosto de 2020

Despedida

 "É muito a cara dela mesmo, morrer num sábado de carnaval!"

 Manu abraçou Cloé, que não parava de resmungar, “esta nigrinha, olha o trabalho que dá, me largar da Gamboa pra Salvador neste inferno! Só Lu mesmo. Lu morreu, Manu, Lu morreu.”
Os olhos estavam secos, não chorava. A cada conhecido repetia a ladainha, “esta nigrinha, olha o trabalho que me dá...”
Carlotinha logo lhe deu um sacode: “para de reclamar, mulher, que ela morreu como gostava, na folia. Certeza, tá melhor que a gente! Bora beber a isto, bora beber a ela!”
“Boralá, que Lu não ia querer ver a gente triste”, concordou Manu, com aceno de anuência da geral.
Letícia foi até o carro, “Vini, alguém tem que providenciar bebida, o velório dela não pode ser a seco.”
Vinícius, que aguentava os porres da mãe e de Lu desde pequeno, tinha os olhos inchados. Gostava dela, aquela maluca que brigava com ele na mesma medida que conversava e dava colo. Raulzito, do banco do passageiro, ainda sem acreditar no acontecido, concordou, “boralá buscar alguma coisa pra galera”.
De vez em quando chegava o som da folia ao longe, na esteira dos carros de foliões a caminho da avenida. A vida continuava. O carnaval continuava. A alegria tinha que continuar. 


Para quem, como a defunta, se mudava a cada dois ou três anos, até que havia muita gente ali. Seus amigos estavam espalhados por este mundão véi sem fronteiras. Passou por tantos lugares, cidades, estados. Em cada um cultivou amigos, mas quem é que tem tempo e dinheiro pra se abalar assim, de repente, pra Salvador? Em pleno carnaval?
A família mais próxima - mãe, irmãos e filhos - estava a caminho. A dificuldade de voos para Salvador, enorme. Sandro, primeiro a chegar, veio de São Paulo, onde as passagens eram mais fáceis. Abraçou Cloé, que recomeçou a ladainha. Juntou sua voz à dela, “é uma biscate, Cloé. Paulinha nasceu no natal, Maya na páscoa, Matheus num sábado à noite, só podia morrer num carnaval.”
Olhou o corpo inerte no caixão. Parecia feliz mesmo na morte, sua irmã.
Sentiu-se perdido. Cloé e Odilon, que não estava, únicos conhecidos dentre os amigos de Salvador. Aos poucos,  identificando-o irmão – tanto pela semelhança quanto pelas histórias que ouviram dela, se aproximaram. “Meus pêsames”, as palavras soavam estranhas, “meus pêsames por sua perda”. Perda? Não, não era. Ela sempre estaria com ele quando se olhasse no espelho, assim como o pai que havia partido antes, deixando a inquestionável herança genética.

Pouco a pouco chegaram os outros, todos com o rosto deformado pelo choro, agora pausado. Cada um com sua dor individual pelo choque com a morte inesperada. Os filhos, nenhum foi direto para o caixão. Adiavam o momento de olhar aquela que, no seu imaginário, era imortal.
Paulinha abraçou Cloé, Maya e Matheus envolveram o tio. Uníssono, desabaram em lágrimas silenciosas, contínuas, com suspiros esparsos.
A voz inconfundível da avó anunciou sua chegava com os tios mais novos, Wan e Tati. No abraço familiar o choro parou, a preocupação com os do coração, “Vó, cê tá bem? Tio, foi boa a viagem? Tati, vieram direto do aeroporto?”
Juntos, depois de palavras banais jamais lembradas, se aproximaram do caixão. Olhando o corpo sem vida, que parecia sereno, a mãe estendeu a mão, “minha filhinha querida, isto não tá certo, um filho partir antes dos pais, não tá certo, por que você se foi?” Ninguém mais falou. Se abraçaram de novo, os sete, em volta do caixão, num tempo que parecia interminável, de palavras desnecessárias e dor pungente. 


Aos poucos os amigos se aproximaram, compartindo abraços e vazio e silêncio.
Foi neste silêncio que os acordes da música começaram, Ivete cantando, “ah, que bom você chegou, bem-vindo a Salvador…”
Carol, com a música no maior volume do celular, chegou botando ordem, “eita, que clima é este? Eu tô no velório certo? É o velório de Lucemary Maria este aqui? Porque se é, a porra tá toda errada! Boralá beber esta defunta como se deve!!!!!"
Paulinha olhou os irmãos e a tia, não se surpreenderam. Tati reconheceu, "tá certa a doida que chegou."
Não conheciam Anna Carolina, mas sabiam da mãe – que certamente, não queria sua despedida com tristeza. Sorriram. A avó e os tios, em concordância tácita, sorriram também. Todos a sabiam.


Uma coisa que a morta amava era música, mesmo que não tivesse ouvidos musicais. Ainda que não conseguisse jamais entoar uma canção inteira sem errar a letra ou desafinar – isto quando não emperrava num mesmo refrão por horas e horas.
Outra coisa que todos sabiam era que Lu era essencialmente otimista. Amava rir. Amava fazer rir. E amava cada um que estava ali.
Quel disse que a próxima música deveria ser “Escrito nas Estrelas”, saudando sua absoluta falta de senso ao encarnar Tetê Spíndola, qualquer hora, qualquer lugar. Bastou isto, as sugestões começaram, Ovelha Negra! O bêbado e a Equilibrista! Como nossos pais! Pais e filhos!  Metamorfose Ambulante! Leãozinho! “Companheiro é Companheiro não pode faltar”, emendou o irmão mais novo.
Histórias com a falecida começaram a surgir, todas faziam rir. Todas traziam alegria. 


O telefone de Paulinha tocou, chamada de vídeo do Gaúcho que, de plantão, não pudera viajar. Queria falar com a avó, com os tios, queria ver a sogra em sua despedida. No telefone da matriarca, chamada de vídeo das tias em Jataí, que também queriam se despedir da sobrinha mais velha. Primos chamaram os três irmãos, Carol em conexão com Analice, de repente lives em todos os telefones, família e amigos de alhures querendo se despedir. Como mágica as pessoas estavam leves.  A cerveja chegou. Dila também – trazendo uísque e vodca. O velório se tornou uma festa, como aquelas que Lu tanto curtia, seus amados de todas as tribos e épocas reunidos.
Quando o corpo saiu para o crematório, um passante perguntou quem era a celebridade que ia ali, ao som de Daniela, "a cor dessa cidade sou eu, o canto dessa cidade é meu..."
Para todo o tempo se lembrariam: nunca houve um velório tão inusitado como aquele. Ela, que amava uma novidade tecnológica e foi pioneira de ICQ e Orkut, evoluindo até Telegram e Instagram, teria amado.
E todos sabiam, no mais profundo de seus corações, que partiu no mesmo clima, feliz. E que,  qualquer fosse seu destino, se tornaria uma festa - porque era isto o que ela fazia melhor.

 

(Exercício de prática de criação de texto, Fortaleza, agosto/2020)