terça-feira, 16 de outubro de 2012

Pausa para o chá


Ela parou o que fazia ao olhar através da vidraça sobre a pia da cozinha, duvidando do que seus olhos enxergaram. A água continuou escorrendo sobre a pouca louça acumulada na bacia, e a xícara que tinha nas mãos escorregou, espatifando-se sobre um prato de sobremesa. O barulho fez com que olhasse para baixo, fechando a torneira devagar, olhando com atenção em demasia, como se precisasse de toda a concentração do mundo para girá-la até o fechamento. Após segundos que pareceram séculos, levantou novamente os olhos em direção à rua, e ele continuava lá. O par de olhos verdes e risonhos que a tinham perseguido, através de lembranças, por tantos anos continuavam os mesmos. A pele em volta tinha rugas, e os cabelos não eram mais negros, sim quase todos brancos – o que, por incrível que pareça, fazia com que ele parecesse muito mais atraente do que jamais fora aos vinte anos, tanto tempo atrás. A pele estava bronzeada, como a de alguém que vive uma vida saudável ao ar livre, e mergulhando em seus olhos ela precisou se apoiar com as mãos para não desabar. Um tremor frio tomou conta de seu corpo, e o estômago se contraiu como que sentindo um golpe forte, seco, direto.
Ficaram se olhando por momentos que pareceram maiores do que os anos todos que se passaram depois que ele disse “meu bem, vou comprar cigarros enquanto você se arruma, volto já”, beijou sua boca macia sempre sedenta dele e nunca mais apareceu. Ela perdeu as contas das vezes em que, tomada pela saudade e preocupação, soluçava até perder o fôlego, entregue ao desespero da falta de notícias – e de repente o pranto se tornava gargalhada histérica, com a consciência, sempre inédita, do clichê. “Saiu para comprar cigarros e nunca mais voltou”, isto parecia drama de radionovelas antigas, e não roteiro de vida real. Da sua vida real. Mas havia acontecido consigo, e roubado o sentido de sua existência. Melhor, havia substituído o sentido de sua existência, que antes era o amor absoluto ao homem que estava parado lá fora, por angústia perene e sofrimento sem fim.
Viúva de marido vivo, diziam as más línguas, ainda que não nunca houvesse chegado sequer uma notícia dele pelo vento, pelo telefone, pelos noticiários. Viúva virgem de marido vivo, aquela que se manteve casta durante todo o namoro e noivado, ardendo em fogo de desejo mas se guardando para a noite de núpcias, que havia de ser como sonhara, perfeita, seu príncipe encantado, o homem ideal, guiando-a na descoberta dos prazeres da carne; e que virgem se mantivera depois que ele, na noite mesma do casamento, desaparecera sem deixar rastros ou vestígios, sem explicação.
Mergulhada nos olhos dele através do vidro imaculadamente limpo, relembrou tudo o que viveu e o que deixou de viver por ele. Mais ainda, sentiu de novo a dor, imensurável e inexplicável, que a movia dia a dia em direção ao futuro, do qual não conhecia sentido. Fizera bem em nunca se mudar, pensou, contrariando o que sempre aconselharam os amigos, que sugeriam que se afastasse da casa que haviam comprado juntos e onde juntos haviam planejado a felicidade conjugal; que se ausentasse das lembranças suscitadas por ela. E agora, ele finalmente retornara para casa.
Lentamente enxugou as mãos no avental e arrumou os cabelos, num gesto natural e um tanto coquete que usava como defesa para ganhar tempo quando se sentia perdida, acuada, ameaçada. Inconscientemente levou as mãos à boca, e só aí ele se colocou em movimento agilmente, com grandes passos até o portão lateral coberto pela hera, que abriu num gesto rápido, subindo os poucos degraus até a porta da cozinha, que sempre ficava aberta. Em segundos estava ali, à sua frente, arfante, mergulhado em seus olhos, buscando adivinhar o que quase meio século de sua ausência haviam feito com ela, lendo nas rugas da face os efeitos do tempo e de sua falta.
Ela queria gritar, gritar, gritar. Queria socá-lo, agredi-lo, queria ver seu sangue correndo pelo chão da cozinha, uma mancha viscosa se se espalhando devagar, indelevelmente. Queria que ele levasse tanto tempo para morrer quanto ela levou lamentando seu destino incerto; queria que além de lenta fosse dolorosa a sua morte; e queria ser ela o arauto a anunciar sua chegada, e de cuja presença ela gozaria cada momento com a intensidade dos gozos sexuais que nunca tivera. Seus olhos não traíram o ódio profundo e absoluto que substituíra o amor no átimo em que o vira ali, lindo, saudável, atraente. Inteiro. Seu amor fora cultivado apenas pela certeza de que ele havia sofrido algum acidente, fora abduzido por alienígenas, havia sido assaltado, morto e sepultado em local desconhecido. Por mais que dissesse às pessoas que alimentava a certeza de que ele vivia em algum lugar desconhecido, e que tinha a (vã) esperança de que um dia retornaria, ela mesma não acreditava nisto e se dedicara a alimentar a fábula da viúva virgem que se tornara o mote de sua existência, então.
Uma vez ele havia roubado sua vida, seus planos, seus sonhos. Agora que ela já não era jovem, que já havia construído para si outra vida, pacata e sem surpresas, não permitiria que ele a roubasse novamente. Abriu os braços num gesto de acolhimento, e ele se jogou sobre ela, abraçando-a , envolvendo-a com seus braços ainda fortes e viris, e seu cheiro invadiu de chofre seus sentidos. Não, não fraquejaria. Ela não queria mais saber o que havia acontecido, ela não queria mais surpresas, ela não queria mudar de novo sua vida por causa dele. Afinal, havia aprendido a transformar a dor e o vazio em um tipo de prazer, ainda que meio mórbido – e estava contente em viver assim, finalmente. Era conhecida por ser a “viúva virgem”, e havia alimentado por tanto tempo esta imagem que não permitiria que ele agora, sem quê nem porquê, virasse seu mundo de novo de pernas pro ar. Esticou as mãos e alcançou a faca de açougueiro sobre a pia, que sempre trazia muito bem afiada para os cortes de carne, e com ela desfechou o primeiro golpe. Sentiu seu abraço se afrouxar, e ele se afastou olhando incrédulo para ela, o verde dos olhos refletindo o vermelho do seu ódio. Outro golpe, e mais outro, e ainda mais um e ele estava no chão, o sangue se espalhando como ela imaginara. Largou a faca na pia, encheu a chaleira e pôs a água para esquentar. Tomaria uma xícara de chá quando acabasse a limpeza da cozinha.