sexta-feira, 29 de junho de 2012

Memórias


Ela amava os sons matinais.
Acordava muito cedo, antes ainda do que a avó, e ficava olhando o escuro enquanto a luz 
entrava, aos poucos, pelas frestas da janela de madeira. Esta escuridão, a do amanhecer, eramuito diferente daquela que, ao anoitecer a enchia de medo de que houvesse, sob a cama,
um monstro disforme pronto a agarrar seus tornozelos assim que colocasse os pés no chão.
Esta era prenúncio de luz, e ia se dissolvendo aos poucos diante de seus olhos, sob o som dos pássaros que cantavam no quintal cheio de árvores e a expectativa de um novo dia todo seu para descobrir coisas novas. 
Quando a avó se levantava e saía do quarto arrastando os chinelos pelo assoalho de tábua 
corrida, cuidadosamente encerado e polido com escovão pela tia, acompanhava seus 
movimentos pelo som. Ouvia-a pegar o penico que ficava sob a cama, do lado do avô, e 
descer os dois degraus para a copa, passando pela cozinha e abrindo a porta para jogar no 
banheiro, que ficava lá fora, o líquido dourado de cheiro forte.
Ouvia o papagaio, que era o xodó da avó, feliz, “olha o dia, dona Maria, louro quer biscoito, 
louro quer biscoito” e a avó, igualmente feliz, respondendo com afagos na sua cachola e 
dando o biscoito pedido.
Ouvia quando ela colocava lenha no fogão de cimento vermelho da cozinha, ajeitando os 
pedaços de madeira sob a chapa de ferro onde a neta amava assar pedaços de queijo fresco. Ouvia quando assoprava com a tampa do caldeirão para o fogo se acender – e podia 
mesmo vê-la amarrando o cinto do roupão comprido enquanto ia até a porta da sala pegar o 
leite e o pão fresquinho, deixados ali há pouco pelo padeiro, fornecedor de longa data e 
confiança, voltando para a cozinha e colocando o leite grosso, recém tirado, para ferver. 
Ouvia então seus passos até a porta do quarto, colocando a cabeça para dentro, “acorda 
menina, já é hora!”, e voltando para o quarto onde o avô, nesta altura, já estava pronto para o dia.
Adorava ouvir, através das paredes de madeira, a primeira conversa dos dois, “Maximiano, 
não dormi bem esta noite”, ou “Maximiano, que barulho foi aquele de madrugada?”, coisas cotidianas de um casal há muito tempo juntos. 
Só quando a avó gritava de lá, “Lucinha, levanta logo! Eita, Maximiano, você mima demais 
esta menina, a preguiçosa ainda não levantou”, é que ela pulava da cama e começava a se 
arrumar, o que fazia sem muita demora, logo descendo saltitante, vestida com o uniforme da 
pré escola, jardineira verde bordada no peito, blusa com renda no decote, sapato boneca, meia combinando. Invariavelmente a avó encontrava alguma falha para corrigir, “menina, arruma esta gola”, “não penteou o cabelo direito”, “olha este olho cheio de remela!”. 
Feliz, se aboletava à mesa de madeira polida forrada com toalha azul de algodão, e enchia a caneca branca de ágata com o leite fumegante, colocando uma generosa colher de Toddy, 
“olha isto, Maximiano, por isto que o Toddy não dura muito, ela não toma leite com Toddy, 
toma Toddy com leite!”, “deixa a menina, Maria, ela gosta”, respondia o avô cheio de 
paciência e infinito amor no olhar.
Pegava um grande pedaço do pão bengala e passava a manteiga feita pela avó com a nata 
que tirava do leite, manteiga saborosa e amarelinha, e comia com gosto. Este era um dos 
melhores momentos do dia, sentada na cozinha, ouvindo a lenha crepitante no fogão, sentindo o cheiro do café, o louro encarapitado na meia porta de madeira, tomando seu leite com 
Toddy e comendo pão com manteiga, sob os cuidados dos avós. 
Sempre pegava mais um pedaço, a avó protestando “menina, chega de pão, você vai ficar um balão!”, e a defesa do avô, “deixa a menina comer, ela gosta”, precedidas de sua afirmativa 
diária, “quando eu crescer vou ganhar sozinha na esportiva – e vou comprar todo o leite com 
Toddy do mundo, e todo o pão com manteiga, e comer o tanto que eu quiser!”.
Terminava o café e lavava o rosto, nem sempre escovando os dentes, não eram hábitos 
cotidianos naquela época, dava um beijo no avô, dava um beijo na avó, pedia sua benção e ia, escoltada pela tia, para a pré escola onde a “tia Belinha” a esperava, sempre, no portão com sorriso e carinho enormes. 
A vida era tão boa aos seis anos de idade!

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