domingo, 23 de outubro de 2011

Vó Maria

Fui uma pessoa de sorte, sempre. Mesmo quando não reconhecia isto.
Tive a sorte de conviver por muito tempo com todos os meus avós, e ainda a minha bisa.
E hoje acordei pensando na vó Maria, mãe do meu pai (porque a mãe da minha mãe também era Maria).
Ela me amava, tenho certeza. Mas, talvez por causa da dedicação exagerada da família toda a uma menininha cheia de vontades atitude, tomou pra si a missão de mostrar pra mim para ela que não, o mundo não girava ao redor do seu umbigo. Apesar de ser a preferida (sem nenhum tipo de disfarce) do meu avô, apesar de ser dodói das tias e tios, sempre senti a falta de ser querida por minha avó de uma maneira especial. Para ela, era sempre a Gilvaninha a melhor. A mais bonita. A mais tudo. Parece ressentimento, dizendo assim, bem sei. Mas não é. Estava aqui matutando sobre a matéria da Isto É que fala de afinidades com filhos, e do nada, o pensamento voou para ela.

"Vó, quando a senhora morrer, deixa pra mim sua máquina de costura?"
Minha avó tinha uma máquina antiga, de pedal, linda, onde aprendi a costurar. E onde comecei minha incursão no mundo do artesanato, fazendo bolsas que vendia na escola, aos dezesseis anos. E eu tinha uma relação de amor com ela.
"Não, sua mãe tem máquina de costura. Ela deixa pra você."
"Mas, vó, a da mamãe não é antiga assim, é de motor..."
"Melhor ainda, mais fácil pra você. Minha máquina vai ficar pra Gilvana."
"Mas vó, a tia Ide tem máquina também!"
Acho que esta mania de ser "bocuda" influenciava muito na nossa relação.
"Já falei, menina. Minha máquina é da Gilvana e pronto."

"Vó, quando a senhora morrer deixa estes brincos pra mim?"
Ela tinha uns brinquinhos de ouro delicados, antigos, que não tirava nunca. E eu amava.
"Não, menina. Vou deixar pra Gilvana."
"Mas, vó! Eu pedi primeiro, a Gil nem gosta deles!"
"Já falei, Lucinha: são da Gilvana. Você vai ficar com as jóias da sua mãe."

"Vó, eu adoro este peixe. Quando a senhora morrer, deixa eles pra mim?"
Além da máquina e dos brincos, o pingente de peixes feito em escamas era o que mais representava minha avó. E eu o amava.
"Não, não deixo."
"É, já sei. São da Gilvaninha."
Pausa. Ela acariciou o peixe que trazia no pescoço com os dedos curvos e me olhou com seus olhos pequenininhos, acho que pensando no que dizer. E soltou, sem chance pra questionamento:
"Não. São da Detina. Ela é minha filha mais velha, vai ficar pra ela."

Minha avó morreu e, da mesma forma que aconteceu quando meu avô se foi, eu estava longe. Não pude me despedir dela. Mas as lembranças todas ficaram. Ela me ensinando a bordar, sentada na área do quintal, aos seis anos, e perdendo a paciência com minha impaciência em ficar fazendo coisa de "menininha" enquanto o sol brilhava lá fora e eu ouvia os gritos da meninada brincando na rua, além do muro da casa de esquina onde nasci. Sim, nasci na casa de minha avó - mas sempre dizia que tinha nascido na casa do meu avô. Lembro dos trabalhos lindos em patchwork que ela fazia, colchas, tapetes. Ela me ensinando a cozinhar. O leite quente, o queijo derretido na chapa do fogão a lenha, o milho assado no calor das brasas. Lembro chá de funcho e biscoito de polvilho em tardes de chuva, o papagaio que ficava na porta cortada ao meio que dava acesso para a lateral da casa do vizinho, lembro o pão de queijo gostoso como o quê. Lembro, mais tarde, já em Goiânia, quando morei um ano com ela e meu avô, a comida pronta no fogão como eu gostava: mandioca cozida, quase desmanchando de tão macia, carne de panela ou carne moída, piqui quando era época, coxinha de galinha que eu adorava. Hoje sei que este carinho era seu jeito de dizer que me amava. Hoje sei que eu também não ajudei muito a nossa relação ser como vejo tantas outras entre neta e avó... eu era cheia de vontades, de razão, de verdades. E era a predileta do meu avô - hoje sei que isto ajudava a afastar um pouco minha avó. Não por ciúmes de mim, eu sei, mas por achar que ele já me estragava o suficiente, e ela tinha que arrumar o estrago que ele fazia.
Hoje sei também que o fato de ser filha do filho, e não de uma das três filhas, pesava. Minha avó teve seis filhos, três homens e três mulheres. Dos vinte e três netos, apenas quatro mulheres, sendo que a mais nova nasceu já quando ela estava bem mais velha. E destas, apenas uma é filha de uma filha.  Acho que ela via como sucessão natural, o que era dela passar para a filha de sua filha, não para a filha de uma outra mulher. Acho até que entendo minha avó.
De vez em quando penso que, de tudo o que pedi a ela como "lembrança", o que gostaria mesmo de ter herdado é a máquina de costura. Que hoje, ninguém sabe onde está, não está com uma das tias, não está com a Gilvana. Mas sei também que não preciso dela para as boas recordações de minha avó e seu amor por mim, que assim como o meu por ela, era real - embora cheio de cuidados.

2 comentários:

  1. Que lindo, mãezinha. Gostei desse espaço novo. ;)

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  2. Lu,

    Nostálgico... é só que posso dizer... terminei por fazer uma viagem para minha infância.

    Beijos

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